Wednesday, February 01, 2006

Contos do Fim do Mundo: A Culpa tem Cor Cinza (Completo)



Patrícia entrou apressada, estava atrasada mais de meia hora. Mas nada saiu como planejado desde a hora em que saiu da cama. E ainda chovia. A chuva que não parava desde a madrugada tornou tudo mais difícil. Era a segunda semana que estava morando sozinha em toda a sua vida. E numa cidade estranha, ainda hostil. Sentia-se uma criança abandonada, engolida pelo barulho intimidante da chuva que caia. A noite não foi tranqüila, mal iniciava a sonhar e logo era interrompida por pesadelos bobos que enganavam a mente adormecida o bastante para fazê-la acordar assustada. A situação era insólita, estúpida. O pavor era real, mesmo sendo infundado. De qualquer modo decidiu não reagir, apenas esperar a chegada da manhã. A luta era entre a razão e o temor infantil e a razão não teve a menor chance neste entrave. Não bastasse a noite mal dormida, levou mais tempo do que o esperado para chegar até a clínica. A cidade estava um caos, até mesmo para o motorista do táxi que a levou. O barulho da cidade batia em seus ouvidos como martelo. A chuva ainda a assustava. O sentimento de desproteção não a abandonava, logo a ela.

Era seu primeiro trabalho externo como repórter na nova editora. Patrícia não esperava encontrar de imediato o mesmo ambiente de trabalho de seu outro emprego, no qual havia trabalhado seis anos. Afinal era agora uma estranha em meio a estranhos. Duas semanas não são suficientes para entrosamento. As pessoas desta cidade eram tão diferentes de seus pares e não faziam o mínimo esforço para que ela se sentisse à vontade.

O tempo passa tão rápido. Seis anos parecem ontem. Há pouco, Patrícia ainda era uma estagiária mal saindo da adolescência, esforçando-se ao máximo para sobressair-se da leva de estudantes de comunicação social que também sonhava com a vaga permanente no jornal. Ousadia e uma certa medida de coincidência lhe asseguraram a vaga. O médico que a acompanhou na infância foi acusado de pedofilia por uma mãe indignada que alegava que seu filho havia sofrido abuso durante os anos em que vinha sendo acompanhado pelo médico. O delegado encarregado do caso, ainda jovem e muito ambicioso, após constatar em exame no IML que a criança poderia ter sofrido abuso, tornou público e a impressa transformou o caso em escândalo nacional, condenando o médico antes de ele ir a julgamento. As mães não deixavam seus filhos sozinhos com os pediatras e houve um aumento na procura de médicas mulheres. O assunto foi discutido em rede nacional.

Era o início da abertura política. O país discutia a possibilidade de eleições diretas. A imprensa experimentava a liberdade em doses tão enormes que a levaram a embriagar-se, tornando-a, por vezes, irresponsável. Quase todos os programas em rede nacional discutiam o caso do médico, os sérios e os nem tanto. E o médico via sua vida privada tornar-se pública. Seus atos da adolescência, completamente típicos dos adolescentes eram então mostrados como manual de comportamento dos psicopatas. Sua casa foi apedrejada noite após noite, seu muro pichado com inscrições impublicáveis até o ponto em que o velho médico viu-se forçado a mudar-se de cidade, indo morar em sua chácara na serra. Patrícia conseguiu convencer o seu supervisor, Marcão, ou formalmente Marcus Vinícius Pereira Domito, a deixá-la entrevistar o médico.

Marcão alimentava interesses além dos profissionais por ela. Conseguia enxergar charme por trás do seu estilo desalinhado de vestir-se, não diferente de muitas adolescentes da época. Nem mesmo o aparelho dental que ela usava o demovia de uma visão particular de Patrícia. Cada um ao seu modo, mas todos os homens que se aproximavam de Patrícia eram alterados, encantados, tocados por sua beleza que a transcendia. Por isso era normal vê-la sempre rodeada de rapazes nos corredores da faculdade. E ela não podia negar que gostava da atenção que recebia.

Na outra ponta da popularidade havia Marcão – sempre alvo de discussões suspirantes das estagiárias, tanto nos corredores do jornal quanto no campus da universidade, onde lecionava no sétimo semestre. Mesmo com a reputação de conquistador barato, sempre arrematava alguma beldade adolescente da faculdade ou do jornal. Algumas delas sabiam em que tipo de relação estavam se metendo, outras achavam-se muito especiais e por isso acreditavam que acabariam controlando a situação. Patrícia simplesmente o ignorou, ou melhor, tinha-o como mais um dos membros do seu séquito.

Os seus pensamentos foram interrompidos pelo barulho da chuva que castigava a sacada do prédio da clínica. O medo infantil havia retornado. Ela apressou o passo até a recepção. O rapaz por trás balcão iniciou, como quem recita a própria a fala – “Em que posso ajudá-la?”
– Eu tenho hora marcada com o Dr. Da Silva.
– Qual o seu nome? – Perguntou o rapaz abrindo o livro de protocolo.
– Patrícia Domito... – disse Patrícia, assustando-se com o ato falho. – Desculpe, Patrícia Lins.
O rapaz pediu para que ela o acompanhasse enquanto dirigia-se ao fim do corredor. No caminho pôde ver uma sala gradeada e trancada onde havia um homem por volta de seus sessenta anos, barba cheia, ainda não completamente branca. O corredor terminava em uma porta na qual ostentava uma placa de metal com a inscrição: “Dr. Hernane Alves da Silva. Diretor”. O rapaz bate à porta e antes de qualquer resposta, abre-a. Dr. Da Silva a recebe com um sorriso.
– Desculpe meu atraso, doutor...
– Não há problema. – Falou com sinceridade. – Ou pelo menos espero que não. Já que passou o horário de visitas, não foi possível manter os pacientes na sala, assim tomamos a liberdade de escolher um paciente para sua entrevista. Isto é problema para a senhora?
– Bem, na verdade seria importante para a integridade da reportagem que eu mesma escolhesse o entrevistado.
– Neste caso, poderíamos marcar novamente para amanhã, no mesmo horário.
– Amanhã seria complicado. O fechamento da semana na revista é amanhã e eu ainda preciso compilar outras informações. – E já considerando a situação, pergunta – O entrevistado é, por algum acaso, o senhor de barba na sala gradeada?
– Este mesmo. O nome dele é ... – e lendo o nome no borrão, disse – João Filomeno Coelho. – Patrícia tomou nota. De alguma maneira ela havia gostado do semblante daquele senhor de barba e talvez não fosse má idéia entrevistá-lo, afinal de contas.
– Ele está lúcido?
– Se estivesse completamente lúcido, não estaria aqui. Mas posso lhe garantir que é possível extrair sentido no que ele fala, foi ele mesmo quem insistiu em ficar quando soube da entrevista.
– Ele está aqui por quê?
– Infelizmente não tenho esta informação no momento. – Disse olhando para o borrão. – Mas eu posso providenciar.
– Pode ser depois da entrevista, assim eu recuperaria algum tempo.
– A senhora quer começar a entrevista agora? – Como a resposta foi afirmativa, Dr. Da Silva pediu pelo interfone que alguém a conduzisse até a sala de visitas.

Patrícia observava as paredes recentemente pintadas enquanto lembrava a primeira vez em que esteve naquela clínica, logo após a denúncia em rede nacional de que os pacientes estavam sendo maltratados e que o ambiente era impróprio para abrigar seres humanos, tamanha falta de higiene observada em todas as dependências. Era-lhe irônico o fato de que uma denúncia na televisão tivesse força superior a qualquer outra providência legal que se aplicasse ao caso. Não importava qual o instrumento, mas Patrícia sentia-se melhor ao ver que a situação havia melhorado para os doentes. Embora o Dr. Da Silva, em sua opinião, fosse um sujeito metódico, pragmático, incapaz de rompantes metafísicos, um médico típico, totalmente contrário à formação liberal que ela tivera, era um sujeito honesto, franco e detentor de um senso de humanidade formidável. Talvez pela suas limitações, ou por seu caráter, era incapaz de ironias, o que é um alívio em um mundo permeado por elas. Certamente ele era o homem certo para a situação. A reportagem já estava praticamente pronta. Se o caso fosse outro, isto é, se não fossem pessoas mentalmente debilitadas envolvidas, bastaria um telefonema para levantar as informações. Pelas paredes novas, a atmosfera respirável, o aspecto daquele senhor de barba por trás das grades, era visível a melhora.

O enfermeiro abriu-lhe o cadeado e a fechadura que isolava a sala onde, naquele momento, estava o homem de barba e em outros momentos servia de sala de visitas para os familiares de outros pacientes. Ele observou Patrícia durante todo o seu percurso até a mesa ao redor da qual ele estava sentado. Ela pediu permissão para sentar-se à mesa com um gesto. Foi respondida também com um gesto. Patrícia pediu para o enfermeiro retirar-se. As normas impediam que ele estivesse ausente, então, resignado ele foi ao ponto extremo da enorme sala, de onde nada poderia ouvir, mas estaria à disposição para alguma eventualidade. Ao sentar-se, colocou o minigravador sobre a mesa e novamente sem falarem, apenas através de gestos, fora pedida e concedida a permissão para a gravação da conversa.
– Eu ouvi dizer que o senhor havia se oferecido para falar comigo. Existe algum motivo especial? – Iniciou Patrícia, sondando a sanidade do interlocutor.
– Existe. E os motivos são dois: um deles é a sua entrevista.
– Qual seria o outro? – A resposta a esta pergunta certamente exporia a sanidade do homem.
– O outro não é seu motivo, logo não interessa no momento. – O tom com que foi falado não revelou agressividade.
– Está certo. – Sorriu quando falou. O homem havia-lhe acendido uma fagulha de curiosidade. Não se fala assim com um repórter quando se quer manter segredo sobre alguma coisa. Mas o medo de uma resposta estapafúrdia que invalidasse o entrevistado era tudo que ela não desejava. – Meu nome é Patrícia Lins e gostaria de lhe fazer algumas perguntas, tudo bem? Primeiro, qual o seu nome?
– Meus pais me batizaram de João. João Filomeno Coelho. Mas sou Caipé. Assim me batizou Uripurá a quem devo tudo, do meu apogeu a minha desgraça. Mas minha desgraça como homem é o meu apogeu e no meu apogeu como homem, meu espírito era lixo. Caipé de Uripurá, este sou eu. – Patrícia tentou entender esta afirmação como algo poético. Pelas circunstâncias, entretanto, era mais provável estar diante de delírios de um louco.
– O senhor sentiu alguma melhora nas condições de viver da clínica? – Foi objetiva, numa tentativa desesperada de ouvir a única resposta que lhe interessava.
– Claro. Somente um tolo não vê. Agora temos nossa dignidade. Uripurá falou que meu aprendizado havia acabado. Agora eu era novamente íntegro e, por isso, poderia ter de volta o esplendor humano. A situação agora vai melhorar cada vez mais enquanto eu estiver aqui. Uripurá abençoou minha casa e todos que nela moram. – A resposta que ela queria estava no meio do delírio e era clara. Fim do serviço.
– Muito obrigada, seu João...
– Você não quer saber o outro motivo de eu estar aqui?
– O senhor não falou que não era meu motivo?
– Quando eu falar será.
– Tudo bem. Qual é?
– Acho que a pergunta certa é quem é.
– Como assim?
– Márcio pediu a Uripurá para lhe dar um recado. Uripurá agora me pede para dar o recado de Márcio para você.
– Quem é Márcio?
– Uripurá diz que não é Marcio. O nome é Marco. – Patrícia foi tomada por um choque. Perdeu visivelmente o equilíbrio.
– O que Marcus quer dizer para mim?
– Que sente sua falta, mas que está bem. Diz que te ama e espera que você possa voltar a ser feliz.
– Pergunte para ele o que aconteceu naquela noite. – Seus olhos encheram de lágrimas.
– Uripurá diz que sabe porque você tem medo de chuva.
– Por quê?
– Homem velho fazia brincadeira com a menininha. Homem velho revirava os olhos quando brincava com menininha. Tava chovendo no dia e menininha tinha nojo de homem velho. Menininha fechava os olhos. Marco diz que homem velho era pai de menininha.
– Seu porco! Seu mentiroso! Dobre a língua quando falar do meu pai! – Disparou enquanto chorava compulsivamente.
– Moça tá certa, Uripurá diz que homem velho não era o pai de menininha. Homem velho era médico de menininha. – Patrícia permaneceu chorando. Quando olhou para o lado viu o enfermeiro se aproximando.
– A senhora está bem? – Perguntou o rapaz.
– Vamos embora – pediu-lhe enquanto tentava se recompor.
O homem de barba iniciou uma gargalhada tão estridente quanto medonha e acrescentou: “Moça está rodeada por Incubus” e acrescentou a isso um gesto lascivo com a língua, tal qual uma cobra.
Quando Patrícia tomou-se novamente por si, já estava na sala do Dr. Da Silva. Ele havia-lhe providenciado um comprimido tranqüilizante e um copo com água. Ela tomou a medicação instintivamente. Dr. Da Silva esperou silenciosamente a sua recuperação, deu-lhe o tempo necessário para que saísse do estado de choque em que se encontrava. Patrícia não precisou o tempo exato que se passou e a medicação trouxe-lhe uma certa paz a qual ela se entregou irrestritamente – a morte deveria ser algo tão sublime quanto aquilo. Adormeceu sentindo-se segura enquanto Dr. Da Silva, silenciosamente, a observava, velando-lhe o sono. Teve então sonhos lindos. Nos sonhos Marcus estava vivo e eles se beijavam...

Patrícia acordou e viu-se numa maca, numa sala que parecia um ambulatório desativado. Olhou o relógio e viu que passava das três da tarde. Estava um pouco atordoada, mas sentia-se revitalizada. Quem a colocou na maca teve o cuidado de tirar-lhe o sapato. Espreguiçou-se sorrindo, lembrando dos sonhos bons. Subitamente veio-lhe o sentido de urgência, o fechamento da revista e junto a isso também voltou-lhe a lembrança do homem asqueroso de barba e das parvoíces pronunciadas. Levantou-se, calçou os sapatos e saiu do ambulatório. Achou o caminho por entre o labirinto de corredores até a sala do Dr. Da Silva. Hesitou por um momento em entrar, estava profundamente embaraçada por toda a situação, pelo seu descontrole, quando sentiu uma presença. Olhou para trás e viu Dr. Da Silva.
– A senhora dormiu bem? – Saudou-a com um sorriso.
– Dr. Da Silva, me desculpe o incômodo, estou tão envergonhada.
– Não há nada do que se envergonhar, estas coisas acontecem. Vamos entrar? – Disse enquanto abria-lhe a porta. Os dois entraram e Dr. Da Silva dirigiu-se a sua mesa e apontou-lhe uma cadeira. Abriu uma gaveta de sua mesa e retirou o minigravador. – A senhora esqueceu isto na sala de visitas. – Ela recebeu o gravador e acenou com a cabeça. – A senhora quer conversar comigo sobre o que aconteceu?
– Quero, mas somente se o senhor parar de me chamar de senhora.
– Então estou pronto para ouvir você.
Patrícia rebobinou a fita no minigravador e reproduziu a entrevista. Dr. Da Silva ouvia compenetrado.
– Que sentido isto faz para você?
– Todo o sentido do mundo. Marcus é meu falecido marido. O médico que ele fala foi meu pediatra e foi acusado de abuso sexual pela mãe de um menino, o caso saiu na impressa durante um bom tempo.
– E que lembrança a senhora, digo, você tem do médico.
– Pelo que eu recordo, nunca chegou a me tocar com outras intenções. Era um senhor, bem velhinho, uma simpatia. Inclusive minha primeira reportagem foi uma entrevista que fiz com ele quando ele havia se mudado de sua casa para a casa de campo. O jornal ficou meio receoso de publicar a reportagem, pois o assunto era polêmico, ele já tinha sido julgado culpado por unanimidade pela opinião pública e ninguém queria humanizá-lo, o que a entrevista acabou por fazer. Logo depois da publicação a mãe da criança retirou as acusações, mas o caso já estava no controle do Ministério Público e a mulher não quis explicar porque mudara de idéia, mas foi categórica ao afirmar que o médico era inocente. O coitado morreu de desgosto poucos meses depois.
– E o seu pai?
– O melhor pai do mundo.
– O que especificamente a incomodou?
– Como o quê? Como ele sabia o nome do meu marido? Como ele sabia da existência do médico?
– Mas você não falou que o médico era inocente?
– Falei. Mas por um tempo, durante o período em que o caso estava nos jornais, eu ficava me questionando se não havia sofrido, de alguma maneira abuso. A histeria de massa, acaba, de alguma maneira nos afetando e eu ficava, às vezes, imaginando que de alguma maneira ele agia com malícia quando pedia um beijinho na bochecha ao fim da consulta e me dava uma bala. Depois eu percebia como estava sendo idiota, pois minha mãe sempre estava comigo.
– Quanto ao nome do seu marido, que ele chama de Marco e você de Marcus, não poderia ter sido coincidência, afinal de contas é um nome bem comum?
– Isso é verdade e agora revendo a fita dá pra ver que ele não revela nada específico sobre o Marcus. Mas o que realmente me impressionou foi ele falar do meu medo da chuva. Hoje eu não tinha conseguido dormir por medo da chuva.
– E nos outros dias? Você tem dormido bem?
– Não durmo bem faz muito tempo.
– Há quanto tempo o seu marido faleceu?
– Vai fazer um ano agora em junho.
– Como ele morreu?
– Acidente de carro. Eu estava com ele, estávamos voltando do litoral.
– Deve ter sido terrível. Você se machucou no acidente?
– Me machuquei muito. O carro virou sucata. Mas eu não lembro nada do que aconteceu dias antes e depois do acidente. Mas o que mais me incomoda é não saber como aconteceu o acidente.
– Não ocorreu perícia para determinar a causa?
– Falha humana.
– Quem estava dirigindo?
– Pelo que tudo indica era ele. Por todas as evidências, concluiu-se que era ele. E este é meu grande problema, saber ao certo o que aconteceu naquela noite. Eu não ando bem desde o acidente e não consigo melhorar o que não pode ser, em nenhuma hipótese, normal. Eu acredito que se eu soubesse ao certo o que aconteceu naquela noite eu poderia voltar a ter uma vida normal.
– Eu lhe indicaria uma terapia. Se você quiser posso lhe indicar um ótimo clínico...
– Terapia demora demais e eu não agüento mais viver assim.
– Eu vou lhe receitar um antidepressivo e assim você vai poder voltar a viver uma vida normal e com o acompanhamento da psicoterapia em pouco tempo você superará estes problemas.
– Eu ouvi falar que o tratamento com hipnose gera resultados rápidos.
– Tão rápidos quanto imprecisos. Hipnose para recuperação de memória é uma coisa perigosa. Estudos sérios têm demonstrado que a hipnose não é muito indicada para este fim, muitas vezes o paciente cria fantasias, cria um passado que não existiu e a mente é criadora tão poderosa, tão rica em detalhes, torna tudo tão verossímil que o paciente passa a acreditar que o que ele fantasiou realmente aconteceu. A hipnose é mais indicada para sugestionar pacientes, fazendo com que um fumante, por exemplo, controle seu impulso de fumar até livrar-se da dependência física.
– Eu gostaria de tentar.
– Posso lhe indicar alguém, mas depois não reclame se descobrir que o seu medo de chuva é fruto de um trauma na vida passada...
– O senhor não acredita em vidas passadas?
– As minhas crenças não importam. É que como médico, como cientista, não vejo fundamentação científica nestas terapias. Existem pessoas sérias trabalhando com isso, pessoas que estão preocupadas com os resultados, que têm sido consideráveis, mas que não afirmam que a experiência é autêntica e preferem imaginar o fenômeno como alguma alegoria mental para a compreensão do inconsciente.
– Que visão materialista das coisas. Quer bem me dizer que o que aquele homem falou para mim não tinha nenhum componente sobrenatural?
– Certamente paranormal, não sobrenatural. Eu requisitei a ficha do homem como havíamos combinado. Ele é o que as pessoas chamam de médium. Veio para a clínica por vontade própria e não sai porque não quer. Ele possui uma disfunção, ou talvez uma capacidade mental de interpretar o pensamento das pessoas, mas como você pôde observar esta capacidade é imprecisa. Criou mais confusão na sua cabeça do que ajudou. Nos tempos de hoje não devíamos mais dar lugar a este tipo de coisas.
– Mas nem em milagres o senhor acredita?
– Se o objetivo é saber se eu acredito em Deus, a resposta é sim. Como pessoa, como Hernane, acredito em Deus e nos milagres. Estes sim são sobrenaturais. Mas esta é uma questão de fé e uma questão pessoal. Para o médico, para o Dr. Da Silva, a existência ou não de Deus é irrelevante e assim a pessoa e o médico podem conviver em paz.
– Me chame de teimosa, me chame do que quiser, mas eu realmente gostaria de tentar o hipnotismo. É muito importante para mim saber o que aconteceu na noite do acidente.
– Tudo bem. Posso lhe indicar um amigo que trabalha com isso.
– Eu gostaria de fazer a hipnose com o senhor.
– Eu não estou mais clinicando, agora tenho um cargo burocrático aqui no hospital e coordeno o curso de mestrado da Universidade Federal.
– O senhor está se saindo muito bem nesta consulta não marcada, antes de chegar aqui eu não tinha muita esperança, queria nem mesmo ter nascido...
– Como eu falei, nem mesmo acredito na eficácia do método.
– Mas sabe como proceder.
– É. Sei. Mas realmente não gostaria de fazer. O que tenho em comum com Freud é ser péssimo hipnotizador. Quando é que você pretende ser submetida...
– Que tal agora?
– Agora não posso. – Disse olhando para o relógio, – vamos marcar para Sexta-feira próxima. Depois das seis.
– Fechado.
– Enquanto isso, tome este comprimido uma vez por dia, antes de dormir, durante seis dias. – Disse enquanto aviava a receita.

Naquele mesmo dia Patrícia terminou a compilação de sua matéria. Tomou a medicação e dormiu tranqüilamente, mesmo com a chuva que persistia. A Quinta-feira foi tranqüila apesar da ansiedade pela chegada da Sexta-feira e do dia estressante na revista, normal em fechamentos de edição. O repórter, além de preparar a matéria, deve requisitar as ilustrações que deseja com antecedência ao departamento gráfico. Em matérias que envolvem algum tipo de especialidade científica como a matéria sobre a clínica é obrigatório a revisão de um profissional da área. A editora age em conformidade com o padrão ISO 9000, o que obriga um conjunto de ações padrões, às vezes cansativas, mas que também trazem seus benefícios como, principalmente, forçar que o time trabalhe de forma profissional, com normas bem estabelecidas, que sempre funcionam, mesmo quando poderiam ser agilizadas por atalhos no processo.

Naquela mesma noite de Quinta-feira, Patrícia aceitou o convite das pessoas de seu núcleo de trabalho para o happy hour. Achou por bem nada beber por conta do medicamento, embora não tenha sido instruída a este respeito. As pessoas afinal de contas não eram bairristas, admitiu, ela sim vinha se comportando de maneira estranha. Enveredou em conversas divertidas, esquisitas, sérias, assuntos de toda sorte. Estava se divertindo. Estava se permitindo, quando subitamente um conjunto de preocupações infundadas, um sentido de urgência a incomodou. Retraiu-se, taciturna. Os outros tentaram levantar-lhe o ânimo, em vão. A felicidade acabou novamente.

Patrícia chegou em casa confusa, não sabendo ao certo se deveria se matar ou tomar a medicação. Esse pensamento a assustou, mesmo sabendo que jamais se mataria, ou pelo menos não naquela noite. Capitulou e percebeu a incoerência dos seus sentimentos. Nada de concreto poderia tê-la levado a este estado de desespero. Nenhum motivo haveria para que ela deixasse de viver, ou melhor, para que não sentisse prazer em viver. Os pensamentos eram confusos e Patrícia evitava considerá-los. Tratou logo de tomar o medicamento. Em pouco tempo as idéias foram clareando e as sandices anuviaram-se. Agora via tudo claramente, mais acuradamente, mas estava com sono, precisava dormir. Tomou um banho quente. O toque da água deu-lhe a noção do seu corpo. Ainda que torpe sentia-se bem mais sensível. Tocava seu corpo como que se redescobrindo. Imaginou que Marcus estava lá junto a ela, tocando-a como ele aprendeu a tocá-la. Tocava os seios, olhos fechados e imaginando a cena como se estivesse assistindo aos dois fazendo amor. Tocou o sexo com a outra mão e engendrou um movimento em ritmo lento. “Faz assim, amor, come tua putinha”, sussurrou para um imaginário Marcus. Aumentou o ritmo, como Marcus fazia quando ela lhe falava obscenidades. Explodiu num clímax delicioso. Torpe e sensível era como estava. A respiração pesada. Passou ainda alguns minutos sob o chuveiro, recompondo-se, sentindo as pernas vacilarem. Os olhos fechados. Estava em paz naquele exato momento. Desligou o chuveiro e colocou o roupão. Dirigiu-se ao quarto, vestiu uma calcinha e uma camiseta e deitou-se, dormindo imediatamente. Sonhou que estava com Marcus na casa de praia, que se beijavam, e quando olhou novamente para Marcus não era mais ele, era um dos seus amigos do trabalho que estava no happy hour naquela noite. Antes que ela dissesse alguma coisa ele a beijou novamente e ela estava gostando. Quando ela olha novamente, o rapaz havia dado lugar ao seu pediatra, o velho sorri e pergunta: “quer uma balinha?”. Ela acorda assustada. Olha o relógio, duas da manhã. Estava com muito sono e dormiu de novo.

O dia de sexta-feira transcorreu sem muitos imprevistos. Nenhuma notícia de última hora teve de ser encaixada. Ao final da tarde a revista já estava completamente editorada no computador, os anúncios em seus devidos lugares. Com a nova impressora importada da Alemanha era possível começar a imprimir a revista até mesmo no sábado, no caso de uma eventualidade. Não era mais necessário fazer a separação de cores, imprimir fotolitos e criar chapas. A separação de cores era automática, rápida. Anos de estudos em matemática e física, que permitem transformar as cores primárias aditivas RGB em cores primárias subtrativas CMYK eram aplicados de modo transparente na nova parafernália tecnológica da editora. A impressão dos exemplares tornou-se tão simples como a impressão doméstica de um documento do computador pessoal.

Às seis horas, Dr. Da Silva recebeu Patrícia em seu escritório. Apresentou-lhe um amigo, Dr. José Padilha, um homem na casa dos cinqüenta anos como maior especialista em hipnose e principalmente como um homem sério. Eram amigos da Universidade Federal. Antes que Patrícia esboçasse alguma reação, Dr. Da Silva afirmou que para uma sessão de hipnose ela estaria mais bem atendida com o Dr. Padilha. Ela cumprimentou o médico e sinceramente não se incomodou com a idéia, ao contrário, sentiu mais segurança. Dr. Da Silva disse então que esperaria o final da sessão fora do escritório. Mas por insistência de Patrícia acabou por ficar.
– Tem alguma pergunta que a senhora gostaria de fazer antes de começarmos?
– Na verdade tenho algumas dúvidas...
– Quais são?
– Eu não acredito que vá conseguir ser hipnotizada...
– Por quê?
– Eu ouvi dizer que pessoas de personalidade forte não conseguem ser hipnotizadas.
– Vamos então derrubar o primeiro mito: hipnose é um estado mental que exige concentração aguçada, um estado no qual a mente foca em um determinado assunto, as pessoas de personalidade forte são as que conseguem melhor concentração e o melhor resultado.
– Eu vou lembrar de tudo que aconteceu durante a hipnose?
– Certamente. Sua mente estará mais aguçada do que nunca.
– Ah! Doutor, a mais importante: será que vou dizer alguma coisa íntima que eu não gostaria de dizer?
– Se você quiser mentir vai conseguir fazer isso com uma destreza maior do que quando não hipnotizada.
– Podemos começar, então.
O médico fechou a luz do consultório. Para evitar a escuridão completa, ligou um abajur que emitia uma luz ínfima. Colocou um pêndulo sobre a mesa e ao contrário do que ela imaginara o deixou imóvel.
“Em poucos minutos vamos iniciar uma das fases do processo. Antes, eu gostaria de explicar o que está para acontecer. Primeiro, você estará consciente toda a sessão, e ouvirá tudo que eu disser. Você sentirá alguma coisa diferente, uma sensação de maior lucidez. Isto é muito bom, pois o mais importante ponto a lembrar é que se você abrir a sua mente para o que eu vou dizer, aceitar as idéias sem questioná-las, deixar acontecer o que acontecer, você estará indo no caminho certo. Apenas ouça o que eu digo e deixe as coisas acontecer sem interferência. Pode ser diferente do que você imagina agora. Não tem problema. Não force nada. Mas se algo acontecer, deixe acontecer...”, pausa.
“Eu quero que você relaxe o corpo na cadeira. Coloque seus pés confortavelmente no chão. Se quiser tirar os sapatos, ótimo. Repouse as mão sobre as coxas, sem pressioná-las”, pausa.
“Você vai observar a esfera do pêndulo sem jamais tirar os olhos dela. Olhe-a fixamente enquanto eu falo. Ouça com atenção as minhas palavras. Evite qualquer outro pensamento. Ignore o resto do mundo. Apenas preste atenção ao que digo e olhe atentamente a esfera. Se seus olhos quiserem fugir da esfera, não se preocupe, simplesmente volte seus olhos novamente para ela. Você pode ver cores emanando da esfera, ela pode parecer crescer ou diminuir, pode parecer mover-se, pode parecer ter uma aura, pode ficar embaçada ou sumir. O que acontecer, deixe acontecer.", os olhos de Patrícia lacrimejavam e boa parte dos efeitos de ótica realmente aconteciam.
“Devo lembrá-la que em qualquer momento seus olhos podem sentir-se cansados a ponto de fecharem. Vá em frente. Você não precisa me dizer. Você pode fechá-los quando quiser", pausa.
"Agora mesmo enquanto você observa a esfera, você nota que seu corpo está relaxando. Quanto mais você se concentra, mais seu corpo relaxa, cada um dos seus músculo está se libertando do stress. Os músculos da barriga também. Seus ombros estão livre do peso. Você está se sentido bem..."
Neste momento Patrícia sente-se flutuando. Entrou no estado hipnótico. Dr. Padilha continuou ainda falando por alguns minutos até notar o transe.
“Você está agora segura, nada pode te ferir”, pausa.
“Você agora vai direcionar suas lembranças para o dia do acidente”. As imagens vieram à mente de Patrícia de forma bastante clara. Ela não estava dormindo, estava consciente, mas relaxada. Jamais imaginara que a hipnose era daquele modo.
“Estou no carro com Marcus. Está chovendo muito. Estamos discutindo ... não lembro o que é, mas é alguma bobagem. Agora estou lembrando, eu ficava dizendo que o Spock, da série Jornada das Estrelas, era mais jovem que o capitão Kirk e ele dizia o contrário. Nenhum dos dois sabia quem era realmente mais jovem, mais continuávamos discutindo. Está chovendo muito. Marcus leva muito a sério as discussões e eu queria irritá-lo só de pirraça. Eu estava usando um blusão ... e mostrei minhas pernas, como que casualmente para ele parar de ser tão sério...”. Patrícia na verdade havia lembrado que levantara a saia e deixara à mostra a calcinha. Marcus parou de falar e em novo tom perguntou: “você tá com aquela a calcinha de rendinha?”. Patrícia lembrou como gostava de provocá-lo, irritá-lo ao extremo para depois fazê-lo se derreter. Marcus era passional e parecia não perceber o jogo que ela fazia, ou então era um excelente jogador. “Eu então cobri novamente minhas pernas e ele pediu para ver de novo”, continuou a falar em voz alta. “Eu então perguntei: quem é mais jovem? Ele respondeu que era o Spock. Eu levantei de novo a saia e mostrei as pernas. NÃO! Umas luzes no sentido contrário, acho que é o caminhão, não vai dar tempo de desviar”, Patrícia começou a chorar neste instante.
“Nada pode te machucar agora”, tranqüilizou o médico.
“O carro bateu, capotou várias vezes, eu bati a cabeça, não vi mais nada”.
“Eu vou contar até três e no três você vai despertar e sentir-se muito bem. Um, dois, três”.

Três meses se passaram. Patrícia continuava fazendo terapia como Dr. Da Silva havia recomendado inicialmente. Pela terapia, acreditou ter descoberto que se sentia culpada pela morte do marido e por isso não havia conseguido superar este episódio de sua vida. Como Dr. Da Silva advertiu, Patrícia não podia afirmar ao certo se o que lembrou na hipnose realmente aconteceu, já que a cena descrita ocorria com certa regularidade enquanto viveu com Marcus. O fato confirmado por sua mãe de que não choveu no dia do acidente, também a intrigava. Mas era indubitável que se sentia responsável pela morte do marido e quando passou a tratar este problema, em terapia convencional, sentiu-se melhor e ensaiava uma vida normal. De qualquer modo, Patrícia sentia-se grata ao homem de barba.