Monday, January 30, 2006

Escolhas


Ainda faltava uma hora para o grande encontro e a imagem não lhe saia da cabeça, sentado na calçada daquele café, naquele dia cinza. A imagem, uma lembrança que demorou anos até que descobrisse era de algo que nunca aconteceu. Era o dorso nu de uma mulher que nunca conhecera, mas que na lembrança lhe era tão familiar quanto ele próprio. Tinha-a desde a adolescência quando podia imaginar um dorso nu feminino com concupiscência, mas aquela imagem lhe era pura, o dorso da mulher que amava, o corpo que era com o dele uma só carne e formavam juntos um só espírito. Desde a adolescência tinha aquela lembrança, e era o que entendia por felicidade. Aquele momento era de felicidade, embora também de expectativa, só uma lembrança era apropriada – a lembrança da felicidade. Será que ela virá?

A sua vida retomara o fluxo normal. Pulara dos vinte e um anos para os trinta e oito. Daquele buraco negro de dezessete anos, apenas Juliana pode fazer parte de sua nova vida. O tempo não foi perdido por causa dela. Todo o sofrimento que passaram juntos os tinha aproximado e Juliana com certeza o apoiará. Sua filha há de entender. O sorriso lhe vem aos lábios quando lembra que ela lhe trazia o travesseiro quando ele deitava no chão para ver televisão e muito delicadamente levantava sua cabeça e encaixava a peça sem nada dizer. Naquele momento é como se ela dissesse que ele era um bom pai e que ela o amava. Por ela, os dezessete anos não foram em vão.

Luciano lembra como se fosse hoje o dia que retornou ao Brasil. Até seu pai estava no aeroporto. Passara seis meses fotografando os países da América do Sul e seis meses fotografando os países europeus tendo como motor uma bicicleta e como hotel uma barraca de camping. Seu pai não gostou nenhum pouco quando ele surgiu com esta idéia de desocupado e não fossem os patrocinadores não teria o dinheiro para a aventura. A idéia pode parecer comum nos dias de hoje, mas nos idos dos anos 70 era absurda. Largar a faculdade de engenharia por um ano era uma idéia que não combinava com a cabeça de seu pai. Não fossem a fabricante de bicicletas, a revista Cruzeiro e o governo da Bélgica, Luciano não teria dinheiro para a empreita. Mas seu pai estava lá no aeroporto, orgulhoso. Junto a sua família estava Carmem. E naquele exato momento ela estava maravilhosa, como convém a uma armadilha.

O garçom lhe traz o pedido. Luciano adora aquela torta de maçã e a perfeição daquele café. Qualquer dia que escolhesse, o café e a torta teriam o mesmo gosto. E provar aquela delícia deveria ser declarado pecado por todas as religiões. Nada tão sublime pode ficar impune de culpa. Agora ele lembra a primeira vez que trouxe Marília para conhecer seu pequeno segredo, para torná-la cúmplice daquele pecado. A mudança em seu rosto quando provou da sua torta preferida. Pena que ela não goste de café. A hora passou, seguiu-se outra hora, outra, outra, até que o Café fechou. Bobagem dele acreditar que aquela felicidade poderia ser recuperada, depois que ele escolheu a vida que escolheu.

Wednesday, January 25, 2006

O ideal ascético




A ciência é uma oficina que exige muito dos que nela se aventuram. A exigência é tanta que suga a humanidade, transmigra o indivíduo em uma espécie de zumbi, uma criatura irreconhecível para os não iniciados. O que difere o homem da ciência em particular e o homem do conhecimento em geral dos seus pares humanos é o ideal ascético. Ele é tão necessário para o homem do conhecimento quanto o é para o homem religioso. É preciso alienar-se dos pormenores da vida comum tanto quanto o religioso precisa alienar-se dos prazeres do mundo terreno. Não pense o menos religioso ou o menos afeito ao conhecimento que esta alienação é algo pesaroso, forçado. Não, o ideal ascético é um modo de vida, ou modo de não vida para quem tem valores mais padronizados, mas o ascético não se sentiria bem levando outro tipo de vida, não pode se imaginar como pai ou mãe de família presente, do tipo que tem bom relacionamento com os filhos, que é amado pelos vizinhos e amigos. O ascético, entretanto, após sua fase de produção, tende a tornar-se um bom pai, mãe, amigo ou amiga, melhor, por vezes, do que os que cultuaram a humanidade durante toda a vida.

Tuesday, January 24, 2006

Contos do Fim do Mundo: A Mulher do Hotel (completo)






“15 Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes. 16 Pelos seus frutos os conhecereis. Por acaso colhem-se uvas dos espinheiros ou figos dos cardos? 17 Do mesmo modo, toda árvore boa dá bom fruto, mas a arvore má dá frutos ruins. 18 Uma árvore boa não pode dar frutos ruins, nem uma árvore má dar bons frutos. 19 Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo. 20 É pelos seus frutos, portanto que os reconhecereis.” – Mateus 7.


Quando Paulo encontra um espaço livre e finalmente estaciona o carro, o seu relógio marca cinco horas. A técnica de adiantar a hora, em cinco minutos, parece sempre funcionar – por mais que saiba que o relógio está adiantado, os seus mecanismos de alerta o incomodam como se a hora do relógio fosse a hora oficial, não são espertos o suficiente para efetuar uma simples operação matemática, uma estúpida subtração – e assim, esse procedimento tão simples tem lhe ajudado a mudar toda a filosofia de vida – a de estar sempre atrasado cinco minutos.

Antes de entrar no hotel, olha para o mar a dez metros dali, e imagina como seria o pôr-do-sol daqui a poucos minutos. E, nesse exato momento, Paulo acha estranho o pensamento. Não o pensamento em si, mas o fato de, morando perto do mar há anos, nunca antes haver se preocupado em ver o pôr-do-sol ou qualquer outra dessas coisas que tanto falam os admiradores, entusiastas e os fanáticos. Já vira, mas não porque quisera vê-lo – era apenas um homem no local e hora em que algo acontecia. De qualquer modo, hoje não é o dia, tem um compromisso. Além do mais, a visão que tinha era apenas do norte. O espetáculo está no sol já morno e passível de observação direta, mergulhando lentamente na linha que divide o mar e o céu, segundo ouvira. O ângulo não estava propício de qualquer maneira – o sol não se põe a norte.

Na época em que éramos colônia de Portugal, a escola arquitetônica Européia era majoritariamente barroca. Era isso que Paulo esperava encontrar na arquitetura do hotel Colonial. Mas não, em lugar disso, o que ele vê é uma arquitetura criativa que reproduz o rústico com conforto. Esse é o hotel Colonial – quartos como choupanas e uma grande área livre no centro, onde fica a piscina, rodeada por cadeiras de madeira e hóspedes que aproveitam os últimos raios de sol daquele dia – contrastando-se com os inúmeros hotéis que povoam aquela mesma costa, grandes monólitos que crescem para cima e nunca para os lados, na região de metro quadrado mais caro da cidade de Fortaleza.

A moça sorridente da recepção aponta para a sala de reunião, respondendo a Paulo. Faltam três minutos para às cinco, de acordo com o relógio do hotel, com certeza a hora oficial. Ele desce um lance de escadas, anda pelo corredor que passa ao largo de alguns dos quartos e desemboca na tal sala. Bate à porta e anuncia seu nome. Uma voz feminina o convida a entrar. Ele abre a porta e cumprimenta a senhora de pouco mais de quarenta anos que o convida a sentar-se na ante-sala. Ela tem cabelos loiros que devem ser muito bem pintados, pois parecem naturais, mas não combinam com a sua tés morena. O seu vestir e o perfume apuradíssimo denunciam a sua vaidade e bom gosto. Também falam muito de sua boa condição financeira – uma mulher com aquela presença não se faz com pouco dinheiro – horas de bons cabeleireiros, pedicuros, consultores de belezas e afins – com certeza aquela visão final que agrada Paulo não se é construída ao acaso, ele já viu muitas mulheres maravilhosas que murcharam quando o manto de proteção da juventude foi-se embora. Ela entra na sala principal de onde Paulo não tem fresta alguma de visão e o pede para esperar enquanto ela se prepara.

O tempo passa lentamente. Os minutos levam horas. E aquela espera soa insólita. Por que ela não o recebe logo? Não se ouve vozes. Ela não está falando com ninguém. Ela não tem porque trocar de roupa. Ele então imagina o que deve estar sendo preparado, mas não consegue chegar a uma conclusão, imagina coisas absurdas, caricatas, com o intuito de se entreter e ajudar a passar o tempo e não de encontrar sentido. Ela fôra muito bem recomendada por alguém em quem ele confia – o Macedo – e essa era a razão da submissão àquela situação.

Macedo tem uma filha que sofre de síndrome de down. Essa diferença genética da filha afetou de sobremaneira as crenças, ou mais precisamente, a incredulidade do pobre homem. “Não há ninguém ou nada neste mundo ou em quantos outros houverem ou venham a existir que eu ame mais do que aquela criança”, para usar as suas mesmas palavras. E na sua busca, não pela cura, mas por uma forma de comunicação com a sua filha Clara, ele experimenta de tudo.

Macedo foi hippie na época de faculdade, quando ainda tinha cabelo, nos anos iniciais da década de setenta. E quem diria que aquele cabeludo iria se tornar calvo ainda aos trinta anos. Da filosofia hippie, se é que existiu tal coisa, gostava do amor livre e das drogas. Experimentou todas não injetáveis – lícitas, ilícitas, fracas, fortes – mas não se tornou viciado em nenhuma delas, nem o álcool deixou saudades. Hoje bebe muito raramente. Entre elas, experimentou o ácido, os Lindos Sonhos Dourados, ou Lucy no Céu de Diamantes, como diziam Os Beatles em Lucy in the Sky with Diamonds, todos anagramas para o LSD, ou ácido lisérgico, um alucinógeno que causou certa curiosidade na época, por parte dos adoradores da natureza, dos espiritualistas, dos gnósticos. O ácido entra na corrente sangüínea através da pele, não é necessário cheirá-lo, aplicá-lo na veia ou mesmo bebê-lo. Essa facilidade de profilaxia permitia formas criativas e inusitadas de comercialização. Macedo conseguia a droga no jornaleiro, comprando figuras de álbum juvenil. Naquela figura colorida, ao se tocar em uma determinada região, como o olho do super-herói da ilustração, o ácido penetrava na corrente sangüínea e em poucos segundos estava nos lóbulos temporais, causando uma tremenda confusão mental.

Visões, estado alterado da consciência e fala obsessiva – todos esses efeitos foram sentidos por Macedo. Muitos afirmam ter uma experiência espiritual, outros arrancam os olhos, ferem-se ou matam-se durante a experiência. Mas o pior de tudo é que sem menos esperar, alguns poucos, que já experimentaram a droga e não a usam há décadas, apresentam os sintomas de como se tivessem feito-lhe uso. Isso pode acontecer ao se estar dirigindo de volta para casa com a família. O fato é que Macedo suspeita que a filha é diferente graças ao seu envolvimento com as drogas, mesmo ele tendo parado com o hábito anos antes de concebê-la. A ciência não confirma a sua suspeita, nem desmente. E isso o afeta. Mais do que se fosse, comprovadamente, o responsável. Queria a certeza e gostaria de poder encontrar um culpado. Na falta de um culpado de carne e osso, gostaria de uma razão, mesmo que fosse ela absurda aos olhos da ciência moderna a quem não deve nenhum respeito.

A necessidade de respostas, levou Macedo a experimentar um sem número de religiões e um outro tanto de tratamentos tão esquisitos quanto inócuos. Ao passar do tempo, ele desenvolveu um senso crítico mais racional e passou a fugir dos embusteiros e sentir-lhes o cheiro a distância, pelo menos gabava-se disso. Uma indicação de Macedo valia o esforço de conferir. O profissional indicado poderia ter todos os defeitos morais, intelectuais e éticos, mas era coisa genuína. Paulo está pacientemente esperando ser atendido por esta mulher, que ele esquecera o nome, porque Macedo a tinha indicado. E ele a indicara como profissional científica – uma psicóloga e parapsicóloga que não está no patamar dos pajés, curandeiros e sacerdotes – uma pessoa das ciências, do jeito que Paulo esperava que fosse. Os pensamentos de Paulo são interrompidos pelo chamado da mulher. Já não era sem tempo.

Ao se levantar Paulo sente suas pernas pesadas. Aquela sensação ele conhece bem. Não é dormência pela má circulação de sangue por ter estado sentado. É o estado de alerta de perigo invisível. Paulo sente isso em alguns locais onde pessoas depois lhe contam que é mal-assombrado. Perto de pessoas que não são muito agradáveis, ou muito violentas, mesmo antes de conhecê-las ou ouvi-las. Sabe que existem coisas que não pode descrever, mas pode sentir. Se mais pessoas tivessem estes sentidos, haveriam termos na língua para descrevê-los e uma só palavra seria suficiente e não um parágrafo inteiro. O perigo existia e, naquele momento, ele já estava arrependido de ter vindo. Mas a mulher o chamara novamente. Iria ao menos ouvi-la, desculpar-se e ir embora.

Aquela mulher elegante agora usava um vestido enorme de sacerdotisa do candomblé, rodeada de pedras semipreciosas, cordões e bijuterias de toda a sorte. Paulo entendeu que viera parar no lugar errado, mas não quis ser indelicado. Sabia, entretanto, que por mais que fizesse daquele momento em diante, entrara em uma região perigosa, imprecisa. Sentou-se à mesa coberta por uma colcha bordada e com detalhes feitos, cuidadosamente, à mão. No seu centro havia uma peneira de palhas de palmeira já maduras. Na peneira, repousava em jogo de búzios.

– Qual o seu nome mesmo, meu filho? – Pergunta a mulher.
– Paulo – responde-a e acrescenta – Qual o seu nome, novamente?
– Elisa. O que te trouxe aqui?
– Você lembra do Macedo, que trouxe a filha Clara, para uma consulta com você nesta semana?
– Lembro, sim. Como ele está?
– Está bem. Ele falou muito bem de você, disse que era psicóloga e parapsicóloga. Eu realmente não esperava uma mãe de santo parametrizada. – Fala com um certo sorriso irônico, mas mantém-se cordial.
– Espere um momento – Elisa sorri e junta todos os búzios com as duas mão, e antes que Paulo fale alguma coisa, os balança, fecha os olhos, balbucia algo ininteligível e atira todo o conteúdo de volta para a peneira. Os búzios se acomodam em forma de U com todas as aberturas voltadas para cima. – Você tem uma grande mediunidade, criou um campo tão forte que todos os búzios se abriram para você, mas precisa desenvolvê-la.
– Senão?
– Caso contrário sua vida vai ficar muito complicada. Não é verdade que tudo que você vai fazer sempre aparece uma complicação?
– Sim. Mas assim é a vida. Quando faço um estudo minucioso do que pode ter dado errado chego a conclusão que deixei de observar algum pormenor que acabou estourando mais a frente. – Paulo responde ainda meio em dúvida, pois há um pouco de razão nisso tudo, mas a confusão é uma das armas da ignorância e desinformação e esta era uma guerra, suas pernas não mentem. – Eu vim aqui por causa de alguns sonhos que venho tendo.
– Shhh!!! Vou ouvi-los daqui a pouco. – Diz isso enquanto repete todo o ritual, e joga novamente os búzios na peneira. – Aqui diz que um momento muito atribulado está querendo se formar na sua vida. Saia daí!!!. – Disse apontando para o lado de Paulo. E como resposta a um olhar atônito, complementa. – Existe um negrinho que o belisca de tempos em tempos. Você não sente um beliscão, vê alguns vultos?
– Sinto, mas com certeza é alguma pontada de um órgão interno. E quanto a ver vultos todos nós vemos, principalmente quando nos viramos rapidamente e a retina nos prega uma peça.
– Puxa, como você é incrédulo! Você sabia que foi um Português na outra encarnação. – Ao ouvir esta última frase Paulo é tomado por um choque. Estas palavras fazem todo o sentido do mundo. Isso o assusta, mas deve manter a serenidade.
– E você é muito crédula, pelo seu lado. Mas que estória é essa de eu ser Português? – Paulo perguntou, meio ríspido, com autoridade.
– Conte-me o seu sonho, mais tarde voltaremos a discutir tudo isso novamente. – Diz Elisa. Neste momento, Paulo arrepende-se de ter mencionado o fato. Se não o tivesse feito era a hora certa de ir embora. Mas rende-se. – “Era uma cidade de praia e era noite. Havia uma atmosfera carregada onde eu estava, eu podia senti-la como quem sente o vento da noite e a maresia. Eu estava em frente a uma casa bem simples, pintada de verde, com a pintura quebrada. Entro nesta casa e vejo na sala de visitas um sofá de madeira também em ruínas com o seu centro lascado. A forma da casa é a de um corredor, só que da porta de entrada vê-se mais largura que comprimento, ou seja, a casa é atravessada e não tem muita profundidade. Ao lado esquerdo e acima do sofá existe uma prateleira de madeira bem pequena, sobre a qual repousa um prato com comida. Eu entro na casa e como do prato. Ao terminar vejo que o fundo do prato é um espelho. Eu então sinto que fiz algo muito errado e que as pessoas dariam conta. Na manhã seguinte, o solo acusa chuva recente. Estou com a minha namorada e uma amiga comum. Peço para minha namorada trazer-me algo. Neste tempo, embora não tenha visto as imagens no sonho, seduzi a nossa amiga e mantive relações sexuais com ela. O sonho então dá um pulo e me vejo andando com uma outra amiga e um conhecido em uma estrada limitada por cercas de madeira, muito bem cuidadas, dos dois lados. Este conhecido segura um aparelho de som portátil que tem duas caixas de som pretas. Converso com a minha amiga enquanto o aparelho começa a pegar fogo. Ela se vira para o lado e diz: “Eles levaram três anos para fazer este aparelho, não pode ser destruído”. “Isso se faz em poucos minutos”, pensei. Ela correu para o aparelho que o rapaz soltara e acaba morrendo no acidente. Eu e este conhecido não comentamos, mas sabíamos que ela morrera para salvar aparelho. Ao final da estrada chegamos a um tipo de grêmio de cidade do interior. Entramos e conhecemos algumas pessoas. Conversei com um homem que falava castelhano, não poderia precisar, mas era quase certo que ele não era latino-americano. Ele então convidou-me a sentar no bar e tomar uma cerveja. Não havia cadeira para mim, ele então foi à piscina e pegou uma cadeira de madeira branca. Havia uma criança sentada nesta cadeira e ele levantou a cadeira mesmo assim, só com uma mão, demonstrando grande força física. A criança pulou e a cadeira foi trazida ao bar. “Por que você não teve medo?”, perguntou-me o forasteiro, referindo-se ao incidente com a minha amiga. “Porque sou protegido por Deus”, respondi e me surpreendi e lembro de ter pensado: “Mesmo Deus tem seus preferidos”. “Por que você se acha protegido por Deus?”, continuou, como se lesse meus pensamentos. “Talvez não por algo que eu tenha feito, mas provavelmente por algo que eu vá fazer”, novamente me surpreendi com a resposta. “Você sabe o que matou a sua amiga, não?”, perguntou ele. “Estava relacionado àquela presença, ela atraía”, novamente outra surpresa na minha resposta. Ele disse então que não me entendera. Falei em portuñol. Ele continuou sem entender. Falei-lhe em inglês e ele pareceu entender. Foi então que me disse: “Você tem olhos fundos como o de um Português”.” – Elisa anotava enquanto Paulo descrevia o seu sonho. Mudava sua fisionomia a medida que algumas partes eram reveladas.
– Este seu sonho tem caráter espiritual. Como você sabe eu também sou psicóloga e é muito raro um sonho ser ao mesmo tempo extenso e ter uma linha única de pensamento.
– O que é o sonho para a psicóloga Elisa? – Pergunta Paulo com real interesse.
– Os sonhos, em geral, fazem parte do processo de organização da memória. Se você observar bem, quando passamos uma noite em claro temos dificuldade de organizar a cronologia dos eventos. Coisas que aconteceram há horas parecem ter acontecido há minutos e vice-versa. Somente após o sono, e os sonhos, podemos fechar a contabilidade do dia. – Elisa fala em tom professoral. – Os sonhos também trazem coisas do inconsciente à tona, isto é, para o consciente. Eles têm sentido simbólico, mas não apresentam, em geral enredo simbólico. E o seu sonho apresenta enredo simbólico, conteúdo simbólico e significado simbólico. – Responda-me só uma pergunta: este seu amigo castelhano usa alguma coisa na cabeça?
– Não nesse sonho. – Novamente a mulher tocara em outro ponto delicado. Paulo tem uma teoria já formada sobre os seus sonhos e experiências, e principalmente uma idéia sobre quem seja o tal castelhano que é figura recorrente. Procura alguém para ratificar suas crenças. Mas ele não quer que essa mulher traga nenhuma resposta. O terreno é perigoso, ela é o inimigo. Na França de Vichy, a arma era a desinformação e a desinformação era recheada de fatos verdadeiros costurados em sofismas. Esta mulher acha que sabe verdades, mas Paulo sabe que só ouvirá mentiras verossímeis: distorções da verdade.
– Acho que você não precisa que eu interprete o seu sonho, você sabe exatamente o que ele significa. Você tem um problema muito mais sério. Você tem algum inimigo? Alguém metido com magia negra?
– Na verdade tenho. Uma senhora que tem uma fábrica de velas de umbanda certa vez me comprou um carro e pagou com dois cheques. O primeiro compensou. O segundo retornou porque tinha sido sustado. Liguei para saber o que tinha acontecido e ela disse que o carro sofrera um acidente e tinha virado sucata e estava dividindo o prejuízo comigo. Ganhei na justiça o valor devido e dizem que ela me jogou uma maldição. Não levei muito a sério, mesmo quando um carro que eu tinha capotou, com apenas um mês de uso, em uma reta.
– Eu sei que você tem preconceito quanto a minha crença. Eu até respeito isso. Mas é melhor você se precaver. Eu posso fazer um trabalho para amarrar o mal que tenta atacá-lo. Se você trabalha com o Macedo, você trabalho no Estado. Pode pedir referências minhas ao Governador. Ou, se você quiser ao Secretário de Estado. Meus clientes são pessoas instruídas. Isto não é magia negra. Meu trabalho é somente com espíritos superiores. E não se preocupe que eu não vou lhe cobrar nada
– Eu não posso me livrar do mal por mim mesmo? Por orações? Sem a necessidade de trabalhos?
– Não. Este tipo de trabalho só pode ser cortado com outro trabalho.
– Mas a Bíblia não tem uma passagem que fala que qualquer pessoa pode expulsar demônios.
– Claro, mas a pessoa para fazer este tipo de coisa deve estar com a vida bem equilibrada, em comunhão com Deus. Senão não terá autoridade sobre os espíritos. Você acha que está preparado? Na Bíblia também há uma passagem que diz que quando um espírito expulso volta ele traz mais sete com ele.
– Não, eu não estou limpo. Mas com certeza você também não está. – Paulo fala com desprezo e rispidez. Agora é a oportunidade de ir embora. – Obrigado pela consulta. Quanto eu lhe devo?
– Não me deve nada. É uma cortesia para os médiums. Geralmente eu cobro de acordo com a capacidade de pagamento da pessoa. Mas para você não cobrarei nada. Tenho certeza que ainda iremos nos encontrar.
– Não conte com isso, Elisa, mas saiba que não é nada pessoal. – Paulo volta a falar amistosamente. – Só mais uma pergunta, se não for incômodo: como você sabe que um espírito é de luz?
– Eu tenho meus guias que só têm feito coisas boas para mim e para quem os requisita ajuda através de mim. Pelos seus atos, sei das suas intenções.
– Mas você mata galinhas ou outros animais neste rituais ?
– Às vezes, sim. Os hebreus também sacrificavam seus animais para os deuses.
– Os hebreus não tinham deuses, insistiam na idéia do Deus único.
– Que seja...

Paulo se despede de Elisa e sai mais confuso do que quando entrou. Mas uma coisa era certa: não era aquilo o que ele esperava daquela reunião. Ele sabe que não fez a coisa certa, mesmo que tenha sido enganado. Foi enganado sim, mas entrou no jogo daquela mulher, ou quem quer que seja que ela estivesse representando. Ele vai até o carro e vê que o pneu dianteiro está seco, quase completamente seco. Decide entrar e dirigir devagar até um borracheiro, evitando assim a sujeira da troca de pneu. Já é noite. Faz a volta e é informado por um passante de que existe um borracheiro a duas quadras de lá. Dirige com muito cuidado até ver, finalmente, o borracheiro. O rapaz que tira pneus levou cerca de trinta minutos para retirar o seu. “Nunca vi pneu mais duro, doutor”, diz o rapaz quando finalmente consegue. Após o reparo e troca de pneu, Paulo volta a pista lentamente, quando inadvertidamente cai com o mesmo pneu dianteiro em um bueiro aberto. Os rapazes da borracharia o ajudam a tirar o carro do buraco. Paulo então nota que apenas as marchas para frente estão funcionando: a primeira, terceira e quinta. Segunda, quarta e ré não funcionam. Com alguma dificuldade consegue chegar em casa. Na manhã seguinte vai ao mecânico. O diagnóstico é um só, não importa o mecânico consultado, a caixa de marcha está irremediavelmente danificada. Com o prejuízo é possível comprar uma moto usada. Paulo então sabe o que aconteceu e sabe que embora o plano seja para que ele volte, ele jamais voltará a ver aquela mulher na vida.

Monday, January 23, 2006

Psicologia Freudiana Prática (embora barata)


O Gênesis

No início era a Mãe.
A Mãe nutria. A Mãe protegia. A Mãe sonhava os sonhos de um lugar que não existia. E às vezes a Mãe cantava cantigas que ecoavam e expandiam aquele espaço mínimo onde Bebê vivia e Bebê flutuava no mar da Mãe onde Bebê estava completamente entregue e protegido. A Mãe amava Bebê e Bebê sabia. A Mãe e Bebê eram um.

Depois veio a voz do Pai.
E a voz do Pai dizia o nome do Bebê e Bebê sabia que a Mãe amava o Pai e o Bebê. Bebê temia que o Pai não permitisse que Mãe e Bebê fossem um só. Bebê não vê os sonhos do Pai. O Pai não alimenta Bebê. O Pai canta para Bebê, mas Bebê entrega-se ao conforto da Mãe. Somente quando Mãe canta, Bebê sente que o mar da Mãe não tem fim e repousa entregue e protegido.

E Bebê vai a deriva.
O mar da Mãe se esvazia. Bebê sente angústia. Bebê é arrancado da Mãe, mas permanece preso a ela. Bebê chora. Doem os olhos de Bebê. Bebê quer voltar ao mar da Mãe. Bebê é separado da Mãe e bebê sente fome e frio. Mãe, por favor, nutre Bebê. Bebê e Mãe são um.


O Paraíso

E Mãe nutre Bebê.
Bebê dorme. Bebê acorda. Bebê chora e Mamãe vem. Bebê nutre-se de Mãe. Bebê arrota. Bebê suja a fralda. Mamãe enxuga Bebê. Bebê sorri. Bebê ama Mãe. Bebê e Mãe são um só. Mãe canta cantiga para Bebê e Bebê sente-se protegido e entrega-se ao canto da Mãe.

O Inimigo

Pai não quer que Bebê e Mãe sejam um. Pai também quer Mãe. Pai dorme com Mãe e Bebê dorme sozinho. Bebê acorda no meio da noite e não vê Mãe. Bebê chora. Pai não pode descobrir que Bebê ama Mãe. Pai não quer que Mãe e Bebê sejam um.

Pai protege Mãe e protege Bebê. Bebê teme Pai, mas precisa de Pai. Bebê teme Pai e ama Pai. Bebê não quer que Pai saiba que Bebê ama Mãe. Papai, por favor, não separa Bebê de Mãe.


O Id

Bebê quer.
Bebê quer água. Bebê bebe. Bebê quer comer. Bebê come. Bebê quer, Bebê tem. Bebê bate no gato. Mãe briga com Bebê. Bebê ri. Bebê não sente culpa.

O Ego

Bebê não é mais Bebê. Também, Mãe é um, Bebê é outro. Mãe e Bebê não são mais um. Criança não suja mais a fralda. Criança chama Mãe quando quer sujar fralda e Mãe ajuda Criança. Criança gosta de pegar no pipi. Mãe diz que é feio. Pai briga com criança.

Criança tem irmãozinho. Criança tem priminho. Priminho e Irmãozinho brincam com brinquedo de criança. Criança quer bater em Priminho e Irmãozinho. Mãe e Pai não deixam. Criança quer fazer. Criança sabe que não pode.

O Superego

Criança não pode pegar no pipi, não pode dizer nome feio, não pode chutar o gato. Criança quer fazer o que tem vontade, mas lembra que Pai e Mãe brigam e não faz.

Criança sonha com rio. Criança faz xixi na cama. Criança sonha batendo no gato. No sonho Criança pode fazer qualquer coisa. Bebê tem pesadelos. Bebê tem medo.

Criança quer bater em Priminho e Irmãozinho. Criança sente remorso quando bate em Priminho e Irmãozinho. Pai e Mãe não precisam brigar mais com Criança. Criança sabe que não pode fazer coisa feia. Criança sente vergonha sozinho quando pega no pipi.

A Neurose

Criança sabe o que é certo e o que é errado. Além de Pai e Mãe, criança conhece Pai do Céu. Pai do Céu é um e é três: Pai, Filho e Espírito Santo. Mesmo se Pai e Mãe não vissem o que Criança faz de errado, Pai do Céu veria. Pai do Céu castiga. Pai do Céu castiga na terra e castiga no céu. Pai do Céu ama criança. Criança faz errado, pede perdão e Pai do Céu perdoa. Criança alcança a graça de Pai do Céu. Criança sonha com coisa proibida, mas Pai, Mãe e Pai do Céu não podem brigar por isso.

Criança sente remorso. Criança é mau. Criança quer ser boa, mas Criança acaba fazendo coisa errada. Criança sente culpa. Criança tem remorso. Criança precisa botar pra fora o que incomoda Criança. Criança quer, mas Criança não pode.

O Fim da Inocência

Criança não é mais criança. Adolescente é agora o que era Criança. Adolescente vê que Pai também não sabe tudo. Adolescente sabe que Pai e Mãe mentiram. Adolescente não acredita em cegonha. Adolescente não acredita em Papai Noel. Adolescente não acredita mais no que diz Pai e Mãe. Adolescente sente angústia. Adolescente não é mais um, é meio.

Adolescente quer Adolescente. Adolescente e Adolescente somam um. Que angústia é ser apenas meio. Adolescente quer Adolescente que é de outro Adolescente. Adolescente quer que outro Adolescente morra. Viver é angustiante. Adolescente sabe que deveria ser racional, mas não é.

Pai do Céu diz que veio primeiro Adão e Eva. Darwin diz que veio primeiro o Macaco. A palavra de Pai do Céu não pode ser entendida pela razão. Adolescente escolhe ora a razão, ora Pai do Céu. Adolescente sabe que vai morrer. Pai do Céu cuida dele após a Morte. Darwin, não.


O Mal Estar da Civilização

Homem é o que era Adolescente. Homem precisa vencer a natureza. Homem precisa da civilização. Civilização quer que homem não satisfaça seus desejos. O Homem é o pior inimigo da Civilização, mas sem Civilização não pode mais existir Homem.

A Religião tem as regras da Civilização. A Civilização não é justa. Pai do Céu é. Se Homem for bonzinho pode viver na Civilização e nunca morre. Quando morre, tem outra vida no Céu, que é onde mora Pai do Céu. Se for injustiçado na Civilização, não será no Céu.

Homem não acredita mais em Pai do Céu. Homem precisa de Pai do Céu para viver em Civilização? Quando Homem usa a razão, Homem pode viver na Civilização, mesmo quando não acredita em Pai do Céu. Homem sente angústia. Homem quer e não pode. Se pode tudo que quer não há Civilização. Sem Civilização não há Homem.

Friday, January 20, 2006

O Caso do Brasileiro Preso em Hannover



Baseado em uma estória real durante a feira Cebit em Hannover, Alemanha (ou foi 2000 ou 2001):

Uma das descobertas mais importantes da feira foi a existência de confraternizações após o horário de funcionamento. Não que as festas tivessem alguma graça, mas em compensação transbordavam de comida. Uma refeição comum numa cidade alemã típica com algum suco ou refrigerante não custa menos do que trinta marcos, não incluíndo a sobremesa. No segundo dia de feira descobrimos a boca-livre e passamos a sair do Messe de Hannover, o gigantesco centro de convenções onde acontece o evento, depois das dez da noite, quatro horas após o encerramento. O almoço também foi substituído por um baguete com presunto, que custa caro, se compararmos com o preço no Brasil, mas é suportável. O hábito adquiriu nível tal de especialização que chegamos ao cúmulo de assistir a palestras em alemão na espera do coquetel servido após. Isto aconteceu ontem e entre canapés bem servidos com salmão, queijo, presunto e outros frios refinados, tomávamos vinho tinto Melot ou branco com uva Riesling. Como meu organismo tem um certo preconceito com álcool, enquanto os meus caros amigos tomavam taças e taças eu consegui beber uma completa. Uma etapa concluída, o próximo passo foi procurar outra confraternização para finalizar o jantar. Não foi difícil. Mais cerveja para os meus amigos. Finalmente, depois das dez, conseguimos ir embora. Como em Hannover praticamente não existem hotéis, é prática hospedar-se em quartos de casas de família. E como o procedimento é corriqueiro existe um nível alto de profissionalização.

Fiquei em uma casa com dois quartos para alugar, o outro foi alugado por um brasileiro que veio para o CeBIT, e para manter sua identidade em sigilo, vamos chamá-lo de Sr. X. O Sr. X havia alugado carro em Frankfurt ou Munique, não lembro bem qual das cidades, e veio dirigindo até Hannover. Como estávamos na mesma casa, aproveitava a carona na ida à feira e na volta, mas na Europa o sistema de transportes é tão eficiente que ter um carro é um luxo dispensável. Voltando ao fatídico dia de ontem, eu me ofereci para dirigir naquela noite, primeiro porque o Sr. X estava ligeiramente embriago. Segundo porque, pela infelicidade de uma doença de infância, a maldita pólio, suas pernas não tinham muita força e naquele dia todos andamos muito. O estacionamento era especialmente distante da entrada da feira e eu fui pegar o Ford Focus alugado para poupar o Sr. X de andar toda aquela distância. Ele insistiu em dirigir e por mais argumentos lógicos que eu usasse para dissuadi-lo, ele foi o motorista. O Sr. X é extremamente seguro de si, ou em linguagem menos politicamente correta, teimoso o bastante para se considerar à prova de engano e acreditar que sabia o caminho de volta para nosso hotel-casa naquela cidade estranha. Após mais de uma hora andando em círculos ele decide finalmente aceitar minha sugestão de olhar o mapa. Paramos numa estrada principal, mas muito estreita, próximo ao semáforo. Devia ser por volta das onze da noite. O Sr. X fica observando o mapa e tentando descobrir nossa localização. Um carro pára atrás do nosso e dá sinal de luz. O Sr. X naquele seu jeito debochado fez sinal com a mão como quem diz passe por cima. Ao terminar o sinal, aquele carro ligou a sirene. Era a polícia, provavelmente nos seguindo há algum tempo, afinal o que aquele carro estava fazendo andando em círculos? O policial chega falando palavras duras em alemão que embora fossem incompreensíveis, sabíamos que eram palavas duras. Quando descobriu que não falávamos alemão e tentávamos explicar que estávamos perdidos e que precisávamos de ajuda, tudo em inglês, não quis conversa. Pegou o bafômetro e mandou o Sr. X soprar. O outro policial que o acompanhava fazia o papel de tira bom, tentando apaziguar. De todo modo o tira mal me entrega o seu cartão com o telefone e endereço da delegacia e diz para eu esperar no carro enquanto o Sr. X é levado para averiguação.

A noite estava bastante fria. Embora já fosse março, ainda havia alguns dias de neve, mas não naquele dia. Fui até a estação de metrô que estava do outro lado da rua e liguei para Claus Traeger, o consultor da SOFTEX na Europa, um brasileiro descendente de alemães, que vive em Colônia, na Alemanha. Então ele ligou para Darci Weiss, uma cearense cujo marido é um advogado alemão. Passados uns trinta minutos, o tira bom retorna na sua viatura, pergunta se eu tenho habilitação e faz o teste do bafômetro. Como não bebi o bastante para coisa alguma, ele pede para que acompanhe sua viatura até a delegacia. Eu tinha acabado de fazer uma cirurgia de miopia, que me deixou apenas dois graus dos meus doze graus e eu estava sem óculos ou lentes e ainda via as coisas embaçadas. Consegui segui-lo sem problemas. O Sr. X é advogado e os códigos legais de quase todos os países têm uma forte influência alemã. Ele estava fazendo o jogo de advogado. O bafômetro não é prova e ele insistia na tese de que sua religião não permitia que lhe retirassem sangue. O inglês do Sr. X não era grande coisa e dentro do seu jogo ainda estava bem pior e eu fiz o papel de tradutor. Uma alemã, a que conduzia o interrogatório, falava em inglês comigo e o Sr. X esperava que eu traduzisse para só então se manifestar e eu então traduzia para o inglês. Também no jogo dos policiais eles conversavam entre si em alemão. O Sr. X tem sobrenome alemão e os policiais temiam que ele entendesse alguma coisa e iam cada vez mais testando limites. A delegação era do Rio Grande do Sul e eu era o único cearense da turma. O Sr. X entendia um pouco do que eles falavam e era algo como “que mala! Vamos ter de passar a noite toda aqui”. No jogo de ganhar tempo, eu cada vez me desesperava mais pois tinha uma reunião às oito da manhã com uma empresa interessada em nossos produtos. Os policiais exigiam uma fiança de mil marcos para liberá-lo. Depois de muito ganha-tempo conseguimos baixar a fiança para seiscentos marcos (a relação era de 2,3 marcos por dólar americano a mesma relação do real à época). O Sr. X disse-me onde seu dinheiro estava no nosso hotel-casa. Perguntei aos policiais como chegar em casa a partir da nossa localização e finalmente consegui a informação que tanto queríamos. Estava bem próximo, somente a alguns quilômetros. Fui ao local indicado pelo Sr. X e havia uma grande quantidade de marcos e dólares, cerca de uns três mil dólares no total. Peguei o dinheiro do acordado e voltei para a delegacia. Quando cheguei, encontrei o Sr. X alquebrado como nunca o havia visto em nossa curta convivência.

Aproveitaram minha ausência como testemunha e lhe retiraram sangue à força. Isto mesmo, no primeiro-mundo há também violência policial. Assinei o boletim como testemunha e como tradutor. Ele insistiu em escrever seu próprio testemunho, como manda a lei em muitos países e embora houvesse uma pressão velada para que ele não o fizesse, escreveu no seu inglês tosco a violência que sofreu e o seu relato teve de ser arquivado junto com o boletim. Chegamos em casa e o Sr. X, sujeito forte como é, não ficou remoendo a violência que sofreu enquanto eu estava me remoendo com a injustiça. No outro dia ele compareceu ao forum, o promotor achou uma injustiça o que ele sofreu e a sua multa acabou reduzida para apenas duzentos marcos. A porta também estava aberta para que ele processasse os políciais. O tempo infelizmente era curto e ele teve de voltar com esta injustiça não desfeita para o Brasil e eu com uma péssima impressão da polícia alemã.

Thursday, January 19, 2006

Novidades que não se vêem na TV

iWeb

Steve Jobs apresentou no dia 10 de janeiro, o iWeb que promete revolucionar a criação de páginas web para uso pessoal. Eu assisti a apresentação e o produto realmente é interessante. O que Steve falou, e eu concordo, é que softwares simples fazem páginas feias e softwares complexos são difíceis de usar para o usuário comum. O iWeb também cria páginas de blog, podcasts e estas coisas da moda.

Disney e Pixar

A Pixar foi responsável pelos sucessos que salvaram a Disney de anos de queda de receita, entre os sucessos incluem-se Monsters, Inc.; Nemo; The Incredibles e Toy Story. A Pixar é de Steve Jobs, o homem que criou a Apple. Disney e Pixar não conseguiram renovar o acordo. Parte porque Steve Jobs não se dava muito bem com o antigo CEO da empresa, Michael Eisner. Com a entrada de Robert Iger, as conversas retornaram. O jornal Wall Street dá como certa a compra da Pixar pela Disney. Com isto, Steve Jobs se tornaria um grande acionista da Disney, com direito a participar das decisões e assim um homem mais poderoso do que já é. Ou como disse um comentarista da CNN, se tornaria o próprio Mr. Incredible.

MBAs nos EUA

Cerca de cem mil pessoas completam MBA aqui nos EUA e são recompensados: a média de salário no primeiro ano é de US$ 106 mil por ano. Eu já fui aceito para o MBA em Project Management na Universidade do Texas, agora falta só o dinheiro para pagar as despesas.

A lei Anti-Walmart

O Walmart é conhecido por aqui como destruidor de economias. Onde chega destrói os pequenos negócios ao redor e acaba com o lucro dos fornecedores. Também é conhecido por pagar mal aos funcionários. A coisa boa é que os preços são realmente baixos. Quando os funcionários de alguma loja se juntam a algum sindicato, o Walmart simplesmente fechas as portas desta loja e vai para outro lugar. Walmart way or Highway (ou é do jeito do Walmart, ou adeus). Sofrendo pressões de todo o lado, especialmente da rede regional Giant (que tem um serviço ao cliente excepcional), o governo de Maryland aprovou a lei que é conhecida com anti-Walmart dia 16 de janeiro. Esta lei força que qualquer empresa com mais de 10 mil funcionários tenha de gastar pelo menos 8% do seu faturamento em benefícios para os funcionários. Por lá só outras três empresas possuem mais de 10 mil funcionários, a Giant, Johns Hopkins (universidade e hospital) e um empreiteiro para o serviço de defesa. Todos já gastam mais de 8% com benefícios. O Walmart iria abrir um centro de distribuição em Baltimore, mas depois desta deve mudar-se para Virgínia (MD, VA, PA ficam próximas e são satélites de Washington, DC).

Hemetério, U2, eu e a sina de um dia depois



Continuo acompanhando as notícias no Brasil através da Internet e uma notícia que me chamou a atenção foi a confusão causada pela correria para comprar o ingresso do show do U2. Eu conheci o U2 na casa do meu amigo Valmir Meneses que hoje mora em Portugal. O CD que eu ouvi foi o Achtung Baby! A primeira música que eu ouvi foi o suficiente para perceber que aquele grupo era muito especial. Cada um teu seu gosto musical e este post não é uma ode ao U2, em breve chegarei ao ponto.

Naquela época, eu trabalhava com uma equipe de notáveis. Fazíamos experimentos, escrevíamos feito loucos e ainda ganhávamos dinheiro com isto. Foi aí que eu conheci o Valmir e o Hemetério. O Hemetério é um grande artista plástico, que agora está escrevendo tão bem no seu blog (ver link ao lado) que, para quem o conhece apenas por lá, não imagina o grande ilustrador que ele é (também mantém o blog Genésio, o galalau, com tirinhas semanais). O Hemé é também um grande apreciador do U2.

O U2 tocou no Brasil pela primeira vez (e única por enquanto) em 1998 no Rio e em São Paulo. Hemé e eu compramos os ingressos imediatamente e fizemos reservas para o Rio de Janeiro com bastante antecedência. Acontece que a agência marcou a viagem para um dia depois da única apresentação no Rio e o pior é que só descobrimos isto quando, de malas prontas, tentamos embarcar na data que pensávamos ser a correta. Não lembro bem, mas acredito que recebemos o dinheiro da passagem de volta, mas o prejuízo foi realmente não ter visto o U2 ao vivo. Antes de eu me mudar para cá, acredito que algumas semanas antes, convidei o Hemé para assistir ao show do U2 no projetor da empresa que eu tinha instalado em casa. Comemos caranguejo e tomamos cerveja, assistindo ao show da área mais VIP possível pelas câmeras. Quando eu cheguei aqui, neste mesmo dia houve um show aberto do U2 em Washington, DC, apenas a alguns quilômetros de onde eu estava. Se eu tivesse chegado um dia mais cedo...

Wednesday, January 18, 2006

O Schwa



Um dos fatores que atrapalha qualquer estrangeiro de pronunciar inglês perfeitamente é o Schwa, uma vogal neutra marcada foneticamente como ə que pode estar fantasiada de várias vogais, com o i de animal; o segundo o de oxford; o u de but; o e de character; o i, o a e a vogal entre sm de Puritanism. Esta vogal falsa pode estar em qualquer palavra e se você não ouviu a pronúncia da palavra fica difícil de imaginar onde ela está, ou se não existe schwa. Depois de algum tempo você acaba percebendo os schwas em palavras novas, mas isto requer tempo. Eu conheço pessoas que vivem aqui há anos, são fluentes na língua, mas têm problemas de pronúncia. Abaixo coloco algumas palavras com o link para a pronúncia correta (os links funcionam melhor com o Internet Explorer). Tentem pronunciar antes e só depois usem os links:

Focus, Taurus, Dulles, Animal, Oxford, Characteristic, Puritanism, But, Organization.

Para verificar a escrita fonética de qualquer palavra inglesa visite http://www.m-w.com.

Tuesday, January 17, 2006

Contos do Fim do Mundo: Sociedade dos Céticos (parte I)



Antes eu era cético com a mesma impropriedade apresentada por aquele que crê somente. Hoje sou um cético que possui convicção igual ao do crente que se banhou nas graças do Espírito Santo mas ao contrário deste posso descrever por palavras minha experiência sem que o interlocutor careça de encontrar-se em um determinado estado de espírito para compreender-me. Se há um começo, um marco que aponte de maneira inequívoca a formação do caráter cético em um jovem que ainda carregava as culpas da religião cristã, como era o meu caso, aos meus dezessete anos, esta efeméride coincide com a partida de Ana Luzia, no momento em que eu perdi o amor que me corroía pois justificava minha existência ao mesmo tempo que me enchia de culpa e junto com ele, algo irrecuperável também foi perdido, a minha inocência. Não me lembro ao certo do rosto de Ana Luzia e a menção do nome dela, neste momento que escrevo seu nome, traz-me a imagem de uma moça de cabelos compridos e negros com uma tez pálida e traços tão delicados que causavam comoção em quem a via, não importando quão insensível fosse o observador. A imagem, de tão genérica, não pode ser mais imprecisa. Antes, quando eu escrevia repetidamente Ana Luzia, Ana Luzia, Ana Luzia na folha do caderno da escola para depois disfarçar as letras, transformando A em B, L em E, u em d, antes de riscar completamente as palavras para que se alguém se empenhasse em descobrir o que fora riscado, olhando através dos riscos, deparasse com símbolos ininteligíveis, o sentimento era de prazer e de dor que como já disse me assolavam. Mais estranho acharia o leitor se eu dissesse que o mais próximo que cheguei de consumar este amor, que custou minha inocência e imputou-me novo caráter, foi um beijo de encontro de lábios, cuja falta de malícia foi culpa exclusiva de minha imperícia. Ana Luzia fôra-me apresentada por meu grande amigo de infância, Leonardo, que antes desta formalidade já a tinha tornado uma figura familiar por conta de suas descrições detalhadas.

Se eu agora apresentasse a qualquer um de vocês Ana Luzia depois de precavê-los, talvez de espírito preparado, o leitor não sofresse a tempestade sensorial que sofri ao vê-la pela primeira vez, tão indefeso. Não fosse somente isso, mas também a afinidade que nós descobrimos ter um com o outro e, no crescendo de nossa intimidade, ver surgir alguma coisa que explicava minha existência e, lembrando mais uma vez, tornava minha vida miserável pela culpa de saber que minha felicidade seria a ruína de Leonardo. Não que ele não pudesse sobreviver sem Ana Luzia, tanto que sobrevive até hoje..

No dia em que nos beijamos, eles namoravam há dois anos. Era fim de tarde e estávamos na casa de praia alugada pelo pai de Ana Luzia para as férias do início de ano. Leonardo estava jogando sinuca sem perder uma partida sequer, enquanto Ana Luzia nos chamava insistentemente para andarmos na praia. Em dado momento ela saiu em direção à praia sem falar nada com ninguém, iria ao passeio sozinha. Leonardo por um momento pensou em interromper o jogo, mas preferiu pedir que eu fosse com ela que em breve ele estaria conosco. Enquanto andávamos Ana Luzia queixava-se que Leonardo não lhe dedicava a atenção de outrora. Paramos em uma duna e deitamos lado a lado. Ela então pediu para que eu descrevesse o que eu via quando olhava para o mar. Não lembro as palavras exatas, mas disse algo que a comoveu, pois ela me olhou e disse: "Você é tão diferente do Leonardo". Neste momento, neste segundo que ela me olhou de modo que todo meu corpo entrou em descompasso, eu a beijei. A maneira como ela entregou-se àquele beijo, me fez pensar que o prazer de saciar o desejo supremo valeria qualquer infortúnio que a culpa causasse. Quando o beijo acabou, Ana Luzia tremia o corpo todo. Tentei repetir o beijo e quando a puxei para mim ela evitou a aproximação com o braço estendido, levantou-se e disse que era hora de voltarmos. Não falamos uma só palavra até chegarmos na casa onde Leonardo ainda continuava jogando sinuca. Foi a última vez que eu a vi.