Monday, January 30, 2006

Escolhas


Ainda faltava uma hora para o grande encontro e a imagem não lhe saia da cabeça, sentado na calçada daquele café, naquele dia cinza. A imagem, uma lembrança que demorou anos até que descobrisse era de algo que nunca aconteceu. Era o dorso nu de uma mulher que nunca conhecera, mas que na lembrança lhe era tão familiar quanto ele próprio. Tinha-a desde a adolescência quando podia imaginar um dorso nu feminino com concupiscência, mas aquela imagem lhe era pura, o dorso da mulher que amava, o corpo que era com o dele uma só carne e formavam juntos um só espírito. Desde a adolescência tinha aquela lembrança, e era o que entendia por felicidade. Aquele momento era de felicidade, embora também de expectativa, só uma lembrança era apropriada – a lembrança da felicidade. Será que ela virá?

A sua vida retomara o fluxo normal. Pulara dos vinte e um anos para os trinta e oito. Daquele buraco negro de dezessete anos, apenas Juliana pode fazer parte de sua nova vida. O tempo não foi perdido por causa dela. Todo o sofrimento que passaram juntos os tinha aproximado e Juliana com certeza o apoiará. Sua filha há de entender. O sorriso lhe vem aos lábios quando lembra que ela lhe trazia o travesseiro quando ele deitava no chão para ver televisão e muito delicadamente levantava sua cabeça e encaixava a peça sem nada dizer. Naquele momento é como se ela dissesse que ele era um bom pai e que ela o amava. Por ela, os dezessete anos não foram em vão.

Luciano lembra como se fosse hoje o dia que retornou ao Brasil. Até seu pai estava no aeroporto. Passara seis meses fotografando os países da América do Sul e seis meses fotografando os países europeus tendo como motor uma bicicleta e como hotel uma barraca de camping. Seu pai não gostou nenhum pouco quando ele surgiu com esta idéia de desocupado e não fossem os patrocinadores não teria o dinheiro para a aventura. A idéia pode parecer comum nos dias de hoje, mas nos idos dos anos 70 era absurda. Largar a faculdade de engenharia por um ano era uma idéia que não combinava com a cabeça de seu pai. Não fossem a fabricante de bicicletas, a revista Cruzeiro e o governo da Bélgica, Luciano não teria dinheiro para a empreita. Mas seu pai estava lá no aeroporto, orgulhoso. Junto a sua família estava Carmem. E naquele exato momento ela estava maravilhosa, como convém a uma armadilha.

O garçom lhe traz o pedido. Luciano adora aquela torta de maçã e a perfeição daquele café. Qualquer dia que escolhesse, o café e a torta teriam o mesmo gosto. E provar aquela delícia deveria ser declarado pecado por todas as religiões. Nada tão sublime pode ficar impune de culpa. Agora ele lembra a primeira vez que trouxe Marília para conhecer seu pequeno segredo, para torná-la cúmplice daquele pecado. A mudança em seu rosto quando provou da sua torta preferida. Pena que ela não goste de café. A hora passou, seguiu-se outra hora, outra, outra, até que o Café fechou. Bobagem dele acreditar que aquela felicidade poderia ser recuperada, depois que ele escolheu a vida que escolheu.

8 comments:

Anonymous said...

Retalhos? Preciosíssimos!

Anonymous said...

"E naquele exato momento ela estava maravilhosa, como convém a uma armadilha."

Fantastico :D

Anonymous said...

legal o blog, mas tem uma coisinha... é Zaratustra, não Zaratrusta

edge said...

quem é a mulher do quadro?

edge said...

Anonimo,
legal a participacao, mas tem uma coisinha..eh zaraStruta, nao Zaratrusta :)

Zarastruta said...

Marco,

Obrigado. Esta estória renderia mais, mas notei que ninguém tem paciência para ler o blog inteiro.

Michel,

Valeria uma tirinha.

Edge,

A mulher do retrato não é ninguém em especial, embora lembre muitas pessoas.

Anonymous,

Obrigado pelo elogio. Zarastruta é intencionalmente assim, ele é primo do outro.

Hemeterio said...

Eita, cheguei tarde, nem vou ganhar comentário do Z. Chuinf!

Se os dois Zs são primos, então o pai de um deles é o Nietzsche e o outro é o Richard Strauss :-)

Zarastruta said...

Hemé,

Brothers in arms.